quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Elementos da narrativa

Elementos úteis na análise de narrativas

................................por Gerferson Neftali

Tipos de Foco Narrativo

Narrador-Observador

O Narrador-Observador é aquele que conta a história através de uma perspectiva de fora da história, isto é, ele não se confunde com nenhum dos personagens. Este foco narrativo se dá, predominantemente, em terceira pessoa e pode ser dividido em:
-Narrador-Observador Onisciente: É o narrador que tudo sabe sobre o enredo, os personagens e seus pensamentos. A onisciência do narrador pode ou não se limitar a apenas um dos personagens da história . Exemplos: Fielding, em Tom Jones; Leon Tolstói, em Guerra e Paz; Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector.
-Narrador-Observador Câmera: Este narrador não tem a ciência do que se passa nas mentes dos personagens da história, mas conhece tudo sobre o enredo e sobre qualquer outra informação que não sejam intimas da psique dos personagens. Exemplo: Goodbye to Berlin, romance-reportagem de Isherwood.
Narrador Personagem
O Narrador-Personagem é aquele que conta a história através de uma perspectiva de dentro da história, isto é, ele, de alguma forma participa do enredo, sendo um dos personagens da história, usando a Primeira Pessoa (eu ou nós) para se contar historia. Pode-se classificar o Narrador-Personagem em:
-Narrador-Personagem Protagonista: Este narrador é a personagem principal da história, narrando-a de um ponto de vista fixo: o seu. Não sabe o que pensam os outros personagens e apenas narra os acontecimentos como os percebe ou lembra. Exemplos: Grande Sertão: Vereda, Guimarães Rosa; Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.
-Narrador-Personagem Testemunha: É o narrador que vive os acontecimentos por ele descritos como personagem secundária. É um ponto de vista mais limitado, uma vez que ele narra a periferia dos acontecimentos, sendo incapaz de conhecer o que se passa na mente dos outros personagens. Exemplo: Memorial de Aires, de Machado de Assis; As Aventuras de Sherlock Holmes, de Sir Arthur Conan Doyle.

Narrador Intruso e Neutro
Uma das características de ambos os focos narrativos é a possibilidade de o narrador, enquanto relata a história, comentar sobre os mais diversos temas como o próprio enredo, a sua vida e a vida dos personagens ou sobre o cenário da narrativa. O narrador que faz este tipo de comentário é chamado de Intruso; o que não o faz, de Neutro.
Nada impede de que, numa mesma história, exista mais de um foco narrativo. O autor deve ter cautela ao executar a mudança do ponto de vista, evitando possíveis confusões no enredo e mau entendimento dos leitores.

"Designa, no interior da prosa literária (conto, novela ou romance) e do teatro, os seres fictícios construídos à imagem e semelhança dos seres humanos: se estes são pessoas reais, aqueles são "pessoas" imaginárias, se os primeiros habitam o mundo que nos cerca, os outros movem-se no espaço arquitetado pela fantasia do prosado!: " (Dicionário de Termos Literários - M. Moisés - Ed. Cultural)
Segundo E.M. Forster, podem classificar as personagens em:
1. Planas (lineares)
Constituídas de uma única idéia ou qualidade; carecem de profundidade. A personalidade delas é pobre, repetitiva; são previsíveis quanto ao seu comportamento, infensas à evolução. Jamais nos surpreenderão durante ou ao final da narrativa. Podem ser subdivididas em:
a) Tipos
São personagens típicas, de contornos e características peculiares e, exatamente por isso, eternizam-se: quem se esqueceria de Sancho Pança, em D. Quixote? Comadres fofoqueiras, homossexuais, padres, nos romances, fazem parte deste rol de personagens.
b) Caricaturas
São personagens que têm distorções propositais, a fim de ensejar o cômico, o ridículo, o satírico: Patrocínio das Neves, a "Titi" do livro A Relíquia, de Eça de Queirós.
2. Redondas
São complexas, bem acabadas interiormente, repelem todo o intuito de simplificação. São também chamadas de multiformes, e nos surpreenderão porque evoluem na narrativa. Dinâmicas e tridimensionais, podem ser subdivididas em:
a) Caracteres
São personagens cuja complexidade se acentua, gerando conflitos insolúveis: é o caso das personagens clássicas gregas: Édipo Rei, Prometeu, Medéia.
b) Símbolos
São personagens que parecem ultrapassar a barreira do mero humano, transcendem. Ostentam profundidade psicológica e multiplicidade de ações: Diadorim, de Grande Sertão: Veredas, Ulisses, da ; epopéia grega A Odisséia, de Homero.
Estas personagens, imprevisíveis em suas atitudes, rompem com a linearidade e nos provocam impactos com suas ações: Medeia, que mata os filhos, apesar de amá-los, para vingar-se do marido que a trocara por outra mulher; Édipo, que, após ter descoberto sua verdadeira origem, conclama a multidão e fura os olhos na frente do povo; Prometeu, que furta o fogo sagrado dos deuses e alia-se aos mortais e andróginos, castigado, amarrado ao Cáucaso, com uma águia a lhe devorar todos os dias o fígado que cresce sem parar.
As personagens podem ser caracterizadas física ou psicologicamente, ou ainda, de ambas as maneiras simultaneamente.
Quanto à atuação no enredo
Esta classificação não segue a concepção do teórico E. M. Forster.
Principais e secundárias
A referência serve para designar que às principais cabe sustentar, como eixo, todos os fatos inerentes à narrativa. Às secundárias cabe dar suporte à continuidade da história, intermediando as ações e girando ao redor das principais como seres complementares.
a) Protagonistas
As que encabeçam as ações, sustentam o eixo narrativo. O mesmo que principais. Leonardo (filho) em Memórias de um Sargento de Milícias é bom exemplo disso.
b) Antagonistas
Designação atual para o antigo vilão. Cabe a elas impedir, dificultar, atormentar a "vida" das personagens protagonistas. Como observação, seria bom lembrar que as antagonistas não precisam ser propriamente pessoas; às vezes, são representadas por sentimentos, grupos sociais, peculiaridades de ordem física, psicológica ou social dos indivíduos e até podem representar instituições. Suponhamos que você tenha uma história onde dois indivíduos do mesmo sexo se amem e queiram casar. O antagonista será o Estado, a sociedade, a Constituição que os impedirá de concretizarem seus desejos.
c) Coadjuvantes
O mesmo que secundárias. Co-auxiliam no desenvolvimento da história.
Tempo
Para o crítico Massaud Moisés, o tempo, no romance, provavelmente constitua o ingrediente mais complexo e o mais relevante: de certo modo, tudo no romance forceja por transformar-se em tempo, que seria, em última instância, o escopo magno do romancista. Mais do que escrever uma história, mostrar cenários, criar personagens, o seu objetivo consistiria na criação de um tempo e da sua fixação, dentro das coordenadas de um livro. Senhor absoluto do tempo, o recepcionista pode acompanhar as personagens durante toda a sua existência. " O crítico ressalta, ainda, que dois tipos de tempo podem ser considerados numa narrativa:
Histórico (cronológico)
Chamado também de linear, diacrônico, é mensurável e segue a organização do dia-a-dia. Tem o ritmo do calendário ou do relógio e pode, muitas vezes, ser apontado por situações adverbiais: à noite, naquela manhã, no outono de 1997. Outros índices temporais podem ser levados em consideração: durante a adolescência, por um instante.
Psicológico (interior ou pessoal)
Decorre "dentro" das criaturas. E sempre imaterial, não mensurável, particular. A única maneira de medi-lo é através das associações com a duração dos sentimentos.
Não é o tempo dos meses, relógios, calendários. É o tempo o ser.
Exemplo do cotidiano: Você marca um encontro, o primeiro, com quem ama, às 7 da noite. Às cinco em ponto você já tomou banho, escolheu a roupa. Olha o . relógio que não move os ponteiros. Estas duas horas que separam vocês serão infinitamente longas, embora o tempo real tenha sido marcado nos relógios de maneira idêntica a todas as horas.
Um outro exemplo: sentado(a) na carteira do c vestibular, com a aflição das inúmeras questões pela frente, seu relógio voa quatro horas são céleres demais.
E o tempo psicológico, interior.
Espaço
Nenhuma personagem, em qualquer tipo de narrativa, está solta no espaço. A especialidade existe sob a forma de ambiente onde se insiram as personagens. E numa classificação simplista, podem ser qualificados; de abertos (o campo, uma praça) e fechados (uma casa, um cômodo, uma sala). Os espaços, muitas vezes, singularizam as criaturas. Veja o exemplo de Bento Santiago, em Dom Casmurro, que mandou reconstruir a casa de sua infância; ou observe um romântico como Alencar descrevendo "os mares bravios", as praias do Ceará, a pequena floresta onde encontramos Iracema pela primeira vez, no livro homônimo.
Em A Relíquia, o narrador cria para a "Titi" um espaço fechado, escuro e tenivel dos fanáticos religiosos. A descrição do oratório, cheio de santos, incensos, toalhas bordadas e um Cristo crucificado; a sala imponente e sombria... Leve, ainda, em consideração o espaço criado por José Lins do Rego, em Fogo Morto: na região do Pilar, ele indica a decadência de um Nordeste antigo e latifundiário usando como símbolo de uma estrada de terra batida, caminho que vai para todos os lugares e traz todas as criaturas e seus sofrimentos.
O espaço é vital para a construção de boas histórias. Menos que um pano de fundo, é indicador de características humanas: O "Paraíso", em O Primo Basílio mostra o caráter das relações entre Basílio e Luísa, assusta-a pelo feio, sujo, quando esperava o belo e romântico lugar para encontrar"se com o amante.
Em O Cortiço, de Aluísio Azevedo, é antes uma personagem, ganha corpo, é antropomorfizado, assemelhase às criaturas. Da mesma forma que a natureza em O Guarani, de Alencar, rompe as barreiras de simples pano de fundo para as ações e passa a ocupar estatus de personagem grandiosa.
Tipologia de Espaços Físicos
São espaços "verdadeiros", ambientes criados pelo narrador para contextualizar suas personagens; é o cenário. No Romantismo, por exemplo, é meramente decorativo; no Realismo, em contrapartida, faz parte indissociável das características mais profundas da personagem: decifra suas características ou, então, indica, através do Determinismo, que o homem é produto do meio em que vive.
Psicológicos
Muitas vezes, o espaço é meramente interior e reflete estados psicológicos. Principalmente nas narrativas intimistas, a especialidade tem acento nitidamente psíquico e aponta os estados de alma das personagens.
Tomando como exemplo Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector, a personagem Joana irá embora no final da narrativa. Em espaço aberto, pelo mar, procurará o "coração selvagem da vida", lugar desconhecido, mas intuído ou sonhado.
Ainda não entendeu o que é espaço psicológico? Vamos lá! Você, suponhamos, receberá um diploma, um prêmio. Está nervoso, inquieto. Chamam seu nome, há centenas de pessoas olhando para você que... atravessa a pista de dança de um clube qualquer e dirige-se à mesa principal para ser premiado, diplomado. O trajeto até a mesa será imenso, quilométrico. Quando olhado numa outra ocasião, parecerá muito menor do que aquele que você, inquieto e nervoso, atravessou com o coração saltando pela boca. Entendeu agora?
Ação
Muito cuidado para não confundir ação com enredo, história ou argumento narrativos. Podemos definir ação como uma seqüência de acontecimentos na narração e, como se encadeiam numa ordem natural de causa e efeito, acabam por formar o todo de que se alimenta a história.
Dessa forma, um conjunto de ações feitas ou recebidas pelas personagens, encadeadas entre si, geram o enredo.
Horácio, poeta latino, observava que a ação, juntamente com o tempo e o espaço, formava o que conhecemos como a "lei das três unidades" que qualquer narrativa jamais pode dispensar para ser digna de crédito.
A seqüência das ações narrativas desenvolve-se no tempo, não se esqueça disso; é um conjunto de fatos; no entanto, é preciso observar que esta seqüência de fatos nem sempre implica uma ação. Para que isso aconteça, é preciso que tais fatos estejam "amarrados" entre si, que formem um todo a que podemos chamar, então, de enredo.
Quando se escreve, não podemos deixar ao longo das narrativas que produzimos "fios soltos". Eles devem ser "amarrados" entre si, produzindo o que chamamos de coerência interna. Mais do que descrever fatos, precisamos prestar atenção e produzir situações que se encadeiem, originando daí o todo narrativo, o conjunto de circunstâncias acionais que gerem uma história na qual se creia.
Como você pode perceber, as ações implicam também verossimilhança e dão unidade e sentido à sua narração ou a qualquer texto que conte uma história.

Análise do poema d´a près nature

um exemplo de análise de poema

................................por Gerferson Neftali

D`après nature


Lá pelos céus das plagas azuladas.
Derrama a lua os olhos de arminho,
E, longe em longe, nuvens esgarçadas
Semelham sombras de um celeste ninho.

À luz da lua, mãos entrelaçadas,
Estão dois noivos, a dizer baixinho
Doces sonhares, coisas encantadas.
Ela a franzir-lhe o lábio um risozinho,

Ele – a jurar o afeto dos poetas,
E a cercá-lo rosas e violetas
Lá no jardim, onde este par se antolha.

Ao longe um padre – olhar velado e langue,
Sentindo-lhe arfar impetuoso o sangue,
Deixa cair a um lado a bíblia... e olha!...




O soneto de Laura Fonseca nos trás alguns aspectos interessantes quanto à forma e o conteúdo. Iniciemos analisando o aspecto que diz respeito ao título que é baseado no naturalismo e sua estética. A locução francesa d`après nature designa toda obra de arte calcada ou mesmo copiada diretamente da natureza. Daí podermos dizer que o naturalismo pode ser definido como "a doutrina estética que busca inspiração direta na natureza e a reproduz com fidelidade.
No soneto de Laura Fonseca vamos observar que o princípio d`après nature fica evidente no último terceto do poema quando é-nos revelado que a cena dois dois noivos namorando sob a luz da lua está sendo observada por um padre.
Outra característica que chama atenção quanto à forma é a presença da pontuação, visto que a autora utilizou dos pontos de forma a deixar claro o entendimento e facilitar a leitura. Interessante notar o uso das reticências ao final do poema, uma pontuação que não apareceu até então e que foi utilizado pela autora na tentativa de deixar uma ideia suspensa, uma indefinição da ação do padre que observa o casal:


“(...) Deixa cair a um lado a Bíblia... e olha!...”


Pode-se notar também que a autora utilizou de um recurso sonoro com a intenção de reforçar a imagem que quis transmitir, a aliteração que é a repetição proposital de sons consonantais idênticos ou semelhantes:

“semelham sombras de um celeste ninho.”
A aliteração aparece mesmo incluído no verso, iniciando a palavra ou no meio dela:

“Ao longe um padre: - olhar velado e langue (...)”


O poema também apresenta enjambement que segundo Massaud Moisés é um recurso métrico que tem a função de alongar um verso encadeando-o ao seguinte, de modo a construir um verso mais extenso do que cada um dos segmentos conectados, assim, vejamos um exemplo de enjambement no poema em análise:


(...) Estão dois noivos a dizer baixinho
Doces sonhares, coisas encantadas (...)

Tais versos presentes no segundo quarteto do poema são entendidos numa única ideia:

“Estão dois noivos a dizer baixinho doces sonhares, coisas encantadas (...)

O poema tem ainda outros enjambements, como por exemplo em:

(...)E a cercá-lo rosas e violetas
Lá no jardim, onde este par se antolha. (...)


Que também poderia ser entendido como uma única ideia bem ritmada:

(...)E a cercá-lo rosas e violetas lá no jardim, onde este par se antolha. (...)

Pois bem, ao final ressaltaríamos ainda a excelência da linguagem utilizada pela poetisa, bastante erudita, bem selecionada fazendo rimas bem feitas na construção do soneto. As palavras eruditas enriquecem o valor do soneto. Algumas delas são: plagas, arminho, langue etc.


Referência:
MOISÉS, Massaud. A criação literária. Poesia. São Paulo: editora Cultrix, 2003

Lavoura Arcaica - o livro


Lavoura arcaica - parte I
1. Argumento

O livro está dividido em duas partes: A partida e O retorno. André, o protagonista, é um jovem do meio rural arcaico que resolve abandonar sua numerosa família do interior para ir morar em uma pequena cidade (ainda no interior), fugindo, em parte, daquele mundo asfixiante da lavoura, onde o passar do tempo parecia consumir as gerações, onde a rigidez moral mantinha as estruturas sociais análogas às da Idade Média, um mundo em que a loucura das paixões primitivas consumia sua alma, como, por exemplo o relacionamento amoroso e incestuoso (fantasioso ou carnal) com sua irmã Ana.
Com sua fuga, André põe a perder o precário equilíbrio da família – baseada em uma estrutura patriarcal clássica e impregnada por um forte caráter religioso e bíblico. O pai, então, determina que o filho mais velho, Pedro, vá em busca do filho pródigo na cidade. Pedro encontra o irmão em um quarto de pensão marcado pela sordidez e, após inúmeros apelos, consegue convencê-lo a retornar ao lar. Este retorno explicitará ainda mais os aspectos doentios e perturbadores do relacionamento entre os membros da família, com destaque para outros dois personagens: o caçula, Lula, que também pretende, a exemplo de André, abandonar a fazenda em busca de um mundo que promete possibilidades infinitas (o drama do êxodo rural), e a figura cigana, sensual e mediterrânea da irmã Ana, personagem que posteriormente será o pivô da ruína final do clã.
A volta de André ao lar traz uma aparente (porém precária) paz ao ambiente já inviabilizado. A palavra do pai, oriunda da tradição dos Dez Mandamentos, das parábolas bíblicas, dos profetas e dos grandes pregadores cristãos, torna-se ineficaz, configurando a simbólica “lavoura arcaica”, e o resultado não poderia ser outro senão a tragédia: o pai mata a filha Ana, ao perceber que ela ama André, e depois, de modo não explícito no livro, também acaba por perder a vida.
2. Análise
Dividiremos, por questão de didática, a presente análise em três segmentos: a linguagem, o contexto histórico e a família.
A linguagem
Narrado em primeira pessoa, Lavoura arcaica está longe de ser uma narrativa linear, embora a ordem dos fatos possa ser apreendida sem maior esforço. A grande dificuldade do livro (simultaneamente fonte de sua riqueza) é a linguagem. De uma riqueza só superada na moderna prosa brasileira por Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa, Lavoura arcaica, no entanto, não pode ser considerado um romance de invenção ou de resgate léxico-sintático como é o do escritor mineiro. Muito antes pelo contrário. O estilo da prosa de Lavoura arcaica é dos mais elegantes e elevados, é patente o cuidado e a meticulosidade na escolha das palavras e na construção das frases. A inovação se dá no modo elíptico com que o narrador se expressa, nesse fluxo de consciência terrível e assustador, o stream of consciousness de James Joyce depurado ao limite, adquirindo assim extrema funcionalidade, permitindo que o narrador tenha um modo sui generis de revelar, por meio de meias-palavras, as grandes atrocidades que cometeu na sua Odisséia às avessas. Sentenças ex abrupto, sentidos incompletos, uma verborragia extremamente sonora que parece ter como único objetivo evidente lançar mais sombras do que luzes aos fatos. No entanto, tal obscurantismo não pode, de maneira alguma, ser considerado uma espécie de composição barroca pura e gratuita.
As sombras, paradoxalmente, realçam as feridas familiares, que no escuro acabam por se tornar ainda mais ofuscantes (basta lembrar da sutilíssima cena de incesto entre André e o irmão caçula, ou da morte do pai ao final do relato). Em Lavoura arcaica o não dito parece ser mais importante do que a narração dos fatos, contrariando a perspectiva clássica da ficção ocidental a partir do século XIX e principalmente a tendência real-naturalista, muito em voga na ficção brasileira desde a retomada promovida pela chamada geração do Romance de 30. No entanto, as relações do livro com sua época e com a crise da ficção nacional nos anos 1970 são evidentes.
O contexto histórico
A bem da verdade, Lavoura arcaica, pela falta de referenciais históricos explícitos, poderia ter acontecido ontem. Eis uma das linhas seguidas por L. A. Fischer em um artigo intitulado Lavoura Arcaica foi ontem. Esta, porém, seria uma leitura que buscaria como base apenas os aspectos da natureza humana, seus conflitos e vicissitudes. No artigo citado acima, Fischer foge dessa análise e acaba por localizar historicamente o livro como o retrato do fim do mundo do imigrante rural. Semelhante processo ocorrerá até os meados dos anos 1970 de maneira geral e em escala nacional, produzindo parte da imensa população que hoje sitia de maneira já não velada e pacífica as metrópoles.

Em um artigo hoje considerado um clássico na área, J. H. Dacanal aborda de maneira brilhante o tema, retratando a crise da literatura brasileira como fruto da incapacidade de abarcar ficcionalmente a explosão demográfica e tecnológica das grandes cidades, além do esvaziamento e fim do mundo rural arcaico. Por isso, os romances da época seriam produto da “era do interregno militar, da desintegração das estruturas políticas e culturais pós-30, da guerrilha urbana e rural, da industrialização acelerada, das grandes migrações no sentido campo-cidade e do conseqüente e monstruoso inchamento das megalópoles da costa, da miséria e da violência física e moral, do ingresso da mulher no mercado de trabalho e da transformação das estruturas familiares do passado, da crise e das mudanças na Igreja Católica”.
Seguindo a linha de raciocínio de Dacanal, que vê na telenovela o novo espelho das mudanças sociais do país, não é de espantar que os últimos nomes influentes da literatura brasileira tenham iniciado suas carreiras nessas décadas. Se Rubem Fonseca é o cantor da crise da cidade, Raduan Nassar será o dos imigrantes que se estabeleceram no campo e agora não têm outra solução além do deserto ou da aniquilação. Se com Guimarães Rosa o Brasil se despedia do mundo medieval e da Contra-Reforma, preservado no interior e nos grotões do sertão, vinte anos depois a narrativa de Raduan Nassar, ainda que de modo indireto, será o epitáfio das famílias de imigrantes, pequenos proprietários rurais expulsos do campo pela falta de oportunidades.
Outro aspecto da crise do período está refletido na descrença dos escritores da geração nos amplos painéis históricos e sociais apresentados pelos escritores filiados ao Romance de 30, entre eles Graciliano Ramos, Jorge Amado, Erico Verissimo, etc. Tal descrença leva os autores do período, passando pelo intimismo e a introspeção de Clarice Lispector, a procurarem novas formas de narrar a realidade. Parece ser essa uma explicação bastante plausível para a ousadia da linguagem em Lavoura arcaica. O passar dos anos só acaba por acentuar em vez de mitigar o estranhamento de tal obra. Por essa razão, temos a impressão de que é útil ao leitor se aferrar ao contexto histórico para evitar que sua apreciação reduza-se meramente ao caráter estético. O que não seria uma postura surpreendente dado o altíssimo feito artístico alcançado por Nassar.

Lavoura arcaica - parte II


A família
Talvez dos aspectos abordados, este seja o mais sujeito a controvérsias, muito embora nos pareça o de maior permanência e importância no sentido ontológico da obra. Antes de mais nada, acreditamos de fundamental relevância traçar um paralelo entre Lavoura arcaica e a peça de Nelson Rodrigues, Álbum de família. Nesta última, vinculada ao ciclo de peças míticas do dramaturgo pernambucano, uma família nuclear concentra no seu interior toda espécie de ódios, crimes e paixões. Esclarecedora é fala de uma das personagens: “Mãe, às vezes eu sinto como se o mundo estivesse vazio, e ninguém mais existisse, a não ser nós, quer dizer você, papai, eu e meus irmãos. Como se a nossa família fosse a única e primeira. Então, o amor e o ódio teriam de nascer entre nós”.

Semelhante drama, ou desespero acomete André, o protagonista de Lavoura arcaica. Observe-se o seguinte trecho: “se o pai no seu gesto austero, quis fazer da casa um templo, a mãe, transbordando no seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa de perdição”
Incapaz de controlar sua paixão pela irmã, Ana, a fuga parece a única saída viável para manter-lhe a razão e a lucidez. Ela, por sua vez, com seu bailado de cigana com os pés descalços na terra, também parece corresponder ao sentimento. Para acelerar a entropia e o caos que acabará por destruir essa estrutura que se fecha sobre si mesma, há a figura austera e poderosa do pai, de uma virilidade quase indecente, há ainda o amor mais que materno da mãe por seu filho predileto e, impossível de ser relevado, a idolatria do caçula por André, que acaba resultando em uma cena de incesto narrada de modo magistral, quase silencioso. O efeito é perturbador.
O crítico teatral, Sábato Magaldi, analisando a peça Álbum de família enxerga nessa estrutura nuclear, sujeita aos desejos sem freios de seus membros, o grito de um moralista que associa diretamente a liberdade plena ao impulso de morte. “Concretizasse o homem suas fantasias inconscientes, a morte seria a inevitabilidade imediata. A História e a Civilização traem inapelavelmente a inteireza dos impulsos autênticos, disfarçados, transferidos ou sublimados em outros valores”.
Estaríamos então no caso de Lavoura arcaica diante de um esforço moralista de um autor que parece afirmar que já não há esfera de sobrevivência para o indivíduo? A família se extingue com o golpe furioso do pai que ceifa a vida da filha e depois desaparece vitimado por um mal misterioso. A cidade e o mundo lá fora, em contrapartida, parecem não oferecer os elementos para suportar a existência de um homem de modo integral. Não seria assim esta obra um grito desesperado em busca de alguma instituição ou comunidade que venha suplantar o vazio?
No seu sentido dramático, Lavoura arcaica filia-se à grande tradição que deu origem a obras como Agamenon, Édipo-rei e Hamlet. Ao mergulhar nas profundezas do inconsciente, nos vãos escuros da civilização e da psiquê humana, Nassar consegue, pelo menos tematicamente atingir a universalidade partindo de um plano rural e particular. Tem-se, ao ler Lavoura Arcaica, a nítida impressão de que o tempo e o espaço da narrativa poderiam ser quaisquer outros.
A verdade é que passado quase trinta anos de sua publicação, Lavoura arcaica, no que diz respeito à natureza da espécie não envelheceu. Enquanto a estrutura familiar for minimamente mantida, os dilemas, sofrimentos e crimes das páginas do escritor paulista seguirão válidas e universais. O arcaísmo presente no título, contundente nas falas e na vida desses personagens mediterrâneos, ou seja, temperamentais, será sempre presente, alimentando e mantendo um dos maiores paradoxos de nossa literatura.

Artigo produzido com a colaboração de Pedro Gonzaga
Bibliografia
Nassar, Raduan, Lavoura Arcaica, Companhia das Letras, São Paulo.
Magaldi, Sábato, Teatro Completo de Nelson Rodrigues, vol.2, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1981
Dacanal, J. H., A desagregação da narrativa real-naturalista: crise cultural e ficção nos anos 70/80 in: Ensaios escolhidos, Editora Leitura XXI, Porto Alegre, 2004.
Gonzaga, Sergius, Curso de Literatura Brasileira, Editora Leitura XXI, Porto Alegre, 2004
Auerbach, Erich, Mimesis, Perspectiva.
Castelo, José, Inventário das Sombras, Editora Record, Rio de Janeiro, 1999.
Fischer, Luis Augusto, Lavoura arcaica foi ontem in: Revista Organon, Instituto de letras, nº19

Crítica literária

Algumas correntes críticas... resumo

...................................por Gerferson Neftali

FORMALISMO RUSSO
Embora o Formalismo Russo tenha uma história limitada, seu alcance e sua significação foram muito amplos e não se resumem a um determinado momento histórico. Os princípios do Formalismo foram expostos por Victor Erlich e pot T. Todorov.
Em 1914 e 1915 um grupo de estudantes resolve fundar o Círculo Linguístico de Moscou com o objetivo de desenvolver estudos de linguística e de poética. Roman Jakobson foi um de seus fundadores.
O Formalismo Russo sentiu a oposição que os marxistas faziam e isto fez com que os objetivos formalistas fossem destruídos, o que deixa claro como a vida cultural de um país pode ficar dependente de uma situação política. Os formalistas surgiram como uma reação sistematizadora aos estudos geneticistas da literatura,como reação ao determinismo, numa preocupação em fazer com que os estudos literários se voltassem para a obra em si, enquanto objeto autônomo de investigação.
O formalismo inaugurou uma série de correntes críticas cuja tônica é desprezar os fatores extrínsecos para se delimitar ao estudo intrínseco da literatura. Esta foi a diretriz fundamental do New Criticism, do Estruturalismo, da própria Semiótica e da Desconstrução.
Eichembaum, um dos principais formalistas, diz que essa abordagem deveria ser chamada de morfológica, para diferenciá-la de abordagens como a psicológica, s sociológica e outras. Na abordagem formalista, o objeto da investigação seria a obra, e nas outras o objeto não seria ela, mas alguma coisa que nela se reflete.

NEW CRITICISM
New critcism aparece por volta dos anos 30, mas há coisas anteriores que tem algo do New Criticism. O que há em comum entre esses movimentos é a mudança radical de uma visão extrínsica para uma visão imanentista. O Formalismo Russo e o New Criticism são os dois movimentos que tem uma familiaridade maior.
O início do movimento coincide também com uma revalorização da poesia, isto em resposta ao racionalismo científico, que já vinha do século XIX, e se voltara mais para a prosa. É um movimento de um certo cansaço do racionalismo, que traz de volta o valor da poesia.
O âmago do New Criticism está em transformar o poema em um objeto em si mesmo; o poema não significa, ele “é”, e a atitude que se recomenda, e que é assumida para chegar ao poema, é o “close reading”, uma leitura que tenta desmontar o poema. O New Criticism é como que um Formalismo radical. Sua atitude é separar o poema tanto do autor como do leitor, nisto se distanciando tanto da crítica genética quanto da estética da recepção, que viria logo ao centro dos estudos literários. Existe no New Criticism uma “materialização” do poema no sentido em transformá-lo em matéria, em objeto.
Para os new critics a noção de estrutura é básica, a tal ponto que lhes repugna terrivelmente a idéia de paráfrase, pois esta será sempre um objeto diferente do poema, já que não preserva sua construção. Ao falar do poema, não se pode parafraseá-lo, porque isto não será o poema. Assim mencionam os autores quando se começa uma crítica com “o que o poema comunica”, torna-se uma atitude errada, pois é uma questão mal colocada. Dizem que o verdadeiro exame do poema não é aquele que localiza as ideias comunicadas pelo poeta com seus embelezamentos. Não se pode separar a beleza da forma da do conteúdo. Se procuramos as ideias do poema, e, ao encontrá-las dizemos que elas se expressam através de metáforas e metonímias, isto é separar forma e conteúdo. Não existem ideias separadas da forma.

ESTRUTURALISMO
O Estruturalismo surgiu como mais uma forma de reação contra o estudo genético da literatura e contra as abordagens extrínsecas à literatura. Apareceu portanto como uma afirmação do imanentismo em crítica literária. Tal reação que também ocorreu, por exemplo, com o new Criticism e com os trabalhos de Eliot, fazia-se necessária para superar um hábito já longo de estudo do autor, da sociedade, de outros elementos exteriores à obra.
O Estruturalismo mantém um certo parentesco com outras correntes críticas, principalmente o Formalismo, na medida em que volta sua atenção para a obra em si e não seus condicionamentos genéticos.
Basicamente a visão de qualquer objeto como estrutura significa encará-lo como um organismo, como um sistema de relações. A estrutura não é uma soma de partes, mas um todo orgânico, que só existe pelo relacionamento interno das partes, de tal forma que a alteração, ou supressão de uma parte pode acarretar não uma simples modificação do todo, mas até a criação de algo novo.
No que se refere à literatura está mais ou menos claro que a obra é uma estrutura, um todo orgânico, um sistema de relações de tal forma que qualquer alteração imposta, por exemplo, a um elemento qualquer de um romance significa alteração da obra toda. Daí ser discutível a validade de se fazer uma adaptação de um romance, acreditando-se que é uma transposição perfeita.
O Estruturalismo surgiu prenhe de ideias sugestivas sobre a natureza do literário. Não esteve livre, entretanto, de extremismos e de simplificações falsas, e são os momentos de reducionismos desnaturalizantes que chamaram a atenção de teóricos como Terry Eagleton. Assim como o Formalismo Russo foi ironizado nos seus excessos (uma obra existiria mesmo que não houvesse seu autor histórico), o Estruturalismo foi satirizado nas suas declarações menos felizes. Antes, entretanto, do texto de Eagleton, houve no Brasil uma apresentação sóbria e extremamente perspicaz, do movimento. É o que faz Fábio Lucas, como em geral, todo grande teórico da Literatura, entendida esta não no sentido rigoroso do termo entre os saberes humanos, mas como uma tentativa de descerrar a natureza mais profunda de seu objeto de estudo.

Carlos Pena Filho - I

Análise de Carlos Pena Filho - Guia prático da cidade do Recife


Carlos Pena: Filho morto e esquecido por Recife

.......................................................................................................................................Gerferson Neftali

Carlos Souto Pena Filho nasceu em Recife em 7 de maio de 1929 e foi na mesma cidade que o poeta veio a falecer no dia 1º de julho de 1960. Estreou em livro em 1952, com o volume “O tempo da busca” (Edições Região), ao qual se seguiram “Memórias do boi Serapião” (Recife Gráfico Amador, 1956), “A vertigem lúcida” (Recife, Secretaria da Educação e Cultura de Pernambuco, 1958), e “Livro geral” (Rio de Janeiro, Livraria São José, 1959).
Com a publicação do seu “Livro geral”, Carlos Pena Filho surpreende a todos por acreditar ser o momento de reunir toda a obra em um volume apenas. Muitos acreditaram que ele havia se precipitado em compilar a obra por ele ser ainda muito jovem, mas só depois do acidente automobilístico que lhe tirou a vida é que perceberam o tom profético com relação à morte próxima presente naquela publicação.
“No Canto geral” reuniu os poemas dos livros anteriores e alguns inéditos, entre os quais o “Guia prático da cidade do Recife”, que faz uma referencia ao titulo da obra “Guia prático histórico e sentimental da cidade do Recife” de Gilberto Freyre, de quem Pena Filho era amigo. “O Guia” (de Carlos Pena Filho) pode ser lido como um grande poema ou em suas partes que podem ser tidos como textos individuais que o compõem. Tais poemas aparecem expostos também como se fossem um a continuação do anterior, sem perder assim o elo temático que dá prosseguimento ao “Guia prático da cidade do Recife”.
Os poemas que compõem “O Guia” (treze no total) que vão desde o “Início” até o ultimo que é “O Fim”, não terão uma forma fixa, como o soneto, que era preferência do poeta, mas tem uma estrutura bastante livre, e sempre preocupados em mostrar o recife de outrora e o recife de agora. Já no primeiro poema (O Início) podemos encontrar tal preocupação:


“No ponto onde o mar se extingue
e as areias se levantam
cavaram seus alicerces
na surda sombra da terra
e levantaram seus muros
do frio sono das pedras.
Depois armaram seus flancos:
trinta bandeiras azuis
plantadas no litoral.
Hoje, serena, flutua,
metade roubada ao mar,
metade à imaginação,
pois é do sonho dos homens
que uma cidade se inventa.”
(Livro geral, p. 129)



O Início tem a forma de um soneto branco setissilábico e levanta o tema do passado e do presente que se completam na forma de duas metades, sendo que uma metade é ausente, estando no plano da imaginação.
A relação entre passado e presente vai repetir-se em outros momentos do guia. Em Manoel, João e Joaquim (Manoel Bandeira, João Cabral e Joaquim Cardozo), podemos observar como Carlos Pena Filho faz uma alusão a fatos biográficos dos poetas, inclusive ao falar de Bandeira, deixa bem claro que o castigo por deixar a cidade é ter um busto fixados num ponto (Parque treze de maio) de onde não possa ver a casa do avô e nem o rio Capibaribe. O poeta aqui em estudo não poderia nem imaginar que há hoje na cidade um busto de Pena Filho nos jardins da Faculdade de Direito do Recife e uma estátua na Praça da Independência. Sem mais delongas, vamos a um trecho do poema:

(...) Hoje a cidade possui
os seus cantores que podem
ser resumidos assim:
Manoel, João e Joaquim.

No jardim Treze de Maio,
Manoel vai ficar plantado,
para sempre e mais um dia,
sereno, bustificado,
pois quem da terra se ausenta
deve assim ser castigado.
Dali não poderá ver
a casa do seu avô
e nem a rua da Aurora,
nem o que o tempo acabou,
nem o mar nem a sereia
e nem boi morto na cheia
desse rio escuro e triste,
de lama podre no fundo
e baronesas na face,
que vem, modorra e preguiça,
parando pelas campinas
e escorregando nos montes,
até este sítio claro,
onde cobriram seu leito
de pedra, ferro e cimento
organizados em pontes.(...) (p. 131)

Em vários trechos do poema notamos uma certa influência de Gregório de Matos quando o assunto é a ironia, uma vez que Carlos Pena Filho em vários trechos assume um lado bastante crítico com relação à sociedade da época.

“Ali é que é o Recife
mais propriamente chamado,
com seu pecado diurno
e o seu noturno pecado,
mas tudo muito tranqüilo,
sereno e equilibrado.
No andar térreo, moram os bancos
(capitais da Capital)
no primeiro, a ex-austera
Associação Comercial,
no segundo, a sempre fútil
Câmara Municipal
e, no terceiro, afinal,
está a alegre pensão
da redonda Alzira, a viga
mestra da prostituição.
Mas como vivem tão bem,
em tão segura união,
qualquer dia, todos juntos,
vão fundar a Associação
dos Múltiplos Pecadores,
com banqueiros, comerciantes,
prostitutas, vereadores,
ingleses do British Club,
homens doentes e sãos,
pois o camelô já disse
que somos todos irmãos.” (p. 137)

Neste trecho de “Bairro do Recife” pode-se notar o tom mais irônico e revelador da crítica social da época onde é possível observar como a sociedade da época estava dividida entre uma vida bem regrada e uma vida de promiscuidade, e do equilíbrio que há nesses opostos. Em um dado momento do “Guia” agora em “Secos e molhados”, Carlos Pena Filho tenta evitar ironizar os portugueses comerciantes da época, mas não consegue e atira:
“Ainda existe muita coisa
de bom e ruim pra contar,
mas como sou conhecido
por discreto no falar,
irei, agora, evitar.
Mas não sem antes passar
pelos armazéns de estiva,
mar dos nossos tubarões,
de brasileiros sabidos
e portugueses sabidões
que na vida leram menos
que o olho cego de Camões,
mas que em patacas possuem
muito mais que Ali Babá
e os seus quarenta ladrões.
É por isto que aos domingos,
cada qual na sua Igreja,
reza, assim, as orações:
Naquele mastro real,
vê se descobres um meio
de aumentar meu capital.
Vendendo carne de charque,
importando bacalhau,
dizendo que prata é ouro
e latão é bom metal,
é assim que vivemos desde
Pedro Álvares Cabral.” (p. 141)



Mas é no poema “O fim” que a ironia cresce e veste-se com sua roupagem mais fina ao narrar o que iria acontecer com o próprio poeta que, sendo filho da cidade, é por ela esquecido. Vamos aos versos:


“Recife, cruel cidade,
águia sangrenta, leão.
Ingrata para os da terra,
boa para os que não são.
Amiga dos que a maltratam,
inimiga dos que não
este é o teu retrato feito
com tintas do teu verão
e desmaiadas lembranças
do tempo em que também eras
noiva da revolução.” (p. 142)

Carlos Pena Filho consegue dar indícios do que viria a acontecer com ele, sendo poeta de grande qualidade, nasce e morre no Recife, outrora teve seu nome entre os grandes, sendo bastante reconhecido na época, hoje se vê esquecido por grande parte da sociedade que ainda deve muito a este que é, entre outros, estandarte da poesia pernambucana.



REFERENCIAS

• PENA FILHO, Carlos. Livro Geral. Poemas. Recife: 1999.
• MONTEIRO, Luiz Carlos. Musa fragmentada – A poética de Carlos Pena Filho. Recife: Ed. Universitária – UFPE, 2009.



Anexo

Guia prático da cidade do Recife

O INÍCIO

No ponto onde o mar se extingue
e as areias se levantam
cavaram seus alicerces
na surda sombra da terra
e levantaram seus muros
do frio sono das pedras.
Depois armaram seus flancos:
trinta bandeiras azuis
plantadas no litoral.
Hoje, serena, flutua,
metade roubada ao mar,
metade à imaginação,
pois é do sonho dos homens
que uma cidade se inventa.

O NAVEGADOR HOLANDÊS

Outrora o tempo era intacto
em seus braços prolongados
e às suas línguas de areia,
virgens de pés e barcaças,
virgens de olhos e lunetas
(até de imaginação)
chegou, tranqüilo e exato,
o argonauta do improviso,
trazendo o sol na cabeça
e o mar do fundo dos olhos,
um gosto de azul na boca
sob a audácia dos bigodes
flamengos e retorcidos.
Mas, depois de algumas bulhas
com o português cristão
e alguns segredos de amor
com as donzelas de então,
escorraçado voltou,
deixando-nos essas coisas
que a sua presença atestam:
algumas mulheres prenhas
destes Wanderleys que restam.

Esse tempo, há muito gasto,
resiste apenas, agora,
em feriados de escola
e em frias e sonolentas
ordens do dia, em quartéis
onde fofos capitães,
esverdeados por fora,
ganham a vida e as estrelas,
o dia, o mês e o ano
à custa do amarelinho
e alegre "porque me ufano".

MANOEL , JOÃO E JOAQUIM

Desse tempo, é o que resta
para um discreto dizer,
pois quem cantou esse tempo
já não é do meu saber.
Hoje a cidade possui
os seus cantores que podem
ser resumidos assim:
Manoel, João e Joaquim.

No jardim Treze de Maio,
Manoel vai ficar plantado,
para sempre e mais um dia,
sereno, bustificado,
pois quem da terra se ausenta
deve assim ser castigado.
Dali não poderá ver
a casa do seu avô
e nem a rua da Aurora,
nem o que o tempo acabou,
nem o mar nem a sereia
e nem boi morto na cheia
desse rio escuro e triste,
de lama podre no fundo
e baronesas na face,
que vem, modorra e preguiça,
parando pelas campinas
e escorregando nos montes,
até este sítio claro,
onde cobriram seu leito
de pedra, ferro e cimento
organizados em pontes.
Desde a Velha, carcomida,
paisagem para detentos,
que é por onde sempre passa
esse povo marginal,
escuro e anfíbio que habita
o cais dito do Areal,
até à ponte mais nova
que tem o nome mais velho:
a ponte de Duarte Coelho.
Mas tudo o que for do rio,
água, lama, caranguejos,
os peixes e as baronesas
e qualquer embarcação,
está sempre e a todo instante
lembrando o poeta João
que leva o rio consigo
como um cego leva um cão.
Mas vieram de longe as águas
que aqui no Recife estão,
já começaram areia e pedra
lá bem perto do sertão
e é por isso, talvez,
que escuras e tristes são.
Porém não foi só tristeza
sua peregrinação,
em seu trajeto tiveram
a farta satisfação
de dar de beber a secos
homens, cavalos e bois
e em seu incerto caminho
ainda viram depois
os sítios cheios de sombra,
onde dorme o sonho espesso
do poeta Joaquim que foi
fazer uma estação de águas
nos olhos do seu amor
e trouxe nos seus, acesos,
os cajueiros em flor.

A PRAIA

Mas não é só junto ao rio
que o Recife está plantado,
hoje a cidade se estende
por sítios nunca pensados,
dos subúrbios coloridos
aos horizontes molhados.
Horizontes onde habitam
homens de pouco falar,
noturnos como convém
à fúria grave do mar.
Que comem fel de crustáceos
e que vivem do precário
desequilíbrio dos peixes.
Nesse lugar, as mulheres
cultivam brancos silêncios
e nas ausências mais longas,
pousam os olhos no chão,
saem do fundo da noite,
tiram a angústia do bolso
e a contemplam na mão.
Só os velhos adormecem,
lembrando o tempo que foi,
vazios como o vazio
e fácil sono de um boi.

SUBÚRBIOS

Nos subúrbios coloridos
em que a cidade se estende,
em seus longos arredores,
onde, a cada instante nasce
uma rosa de papel,
caminham as tecelãs.
Restos de amor nos cabelos
que ocultam por ocultar,
levam a noite no ventre
e a madrugada no olhar
e em esqueletos da sombra,
onde a luz chega filtrada,
as tecelãs vão parar.
Adeus lembrança de amores,
adeus leve caminhar.
Agora resta somente
um desencanto sereno:
o gerente e as botinas,
magoando o silencio pleno.

Mas, nos domingos mais claros,
as tecelãs se transformam
em puras rosas de sal
e oferecem os seus braços
à curva do litoral.
Nem se lembram mais do mangue,
podre, virgem, vegetal,
onde os homens são sem sonhos,
como qualquer mineral.

A LUA

Mas, enquanto tudo é fome,
por todo o reino animal,
existe ainda fartura
na "terceira capital",
pois os que forem passear
no cais da rua Aurora,
em certa noite do mês,
poderão sair dizendo,
todos juntos, de uma vez:
Era uma lua tão grande,
de tão vermelha amplidão
que mesmo Ascenso Ferreira,
comendo só a metade,
morria de indigestão.

IGREJAS

Não é que somente em luas,
o Recife farto seja;
é farto, também de igrejas.
Tem a de São Francisco,
na rua do Imperador,
com rezas pra Santo Antônio
e promessas por amor;
tem a Igreja de São Pedro,
no pátio do mesmo nome
que se fosse gente, há muito
tinha morrido de fome,
mas, como é, firme, resiste,
sozinha, em seu abandono
e em seu destino bem triste
de igreja quase sem dono.
E como se fosse pouco
seu exílio obrigatório,
ainda está condenada
a ver o bar de Gregório,
onde os nossos literatos,
criados a uva e maçãs,
levam os amigos de fora
pra comer sarapatel,
depois transformado em obra
com tinta escura e papel.

Mas não é só; o Recife
ainda tem muitas igrejas
lavando os pecados seus.
Tem lá perto do mar,
plantada em meio do mal,
a sua concatedral
chamada Madre de Deus,
que é onde essas menininhas
de Maria Madalena
vão à missa e à novena.

O BAIRRO DO RECIFE

Ali é que é o Recife
mais propriamente chamado,
com seu pecado diurno
e o seu noturno pecado,
mas tudo muito tranqüilo,
sereno e equilibrado.
No andar térreo, moram os bancos
(capitais da Capital)
no primeiro, a ex-austera
Associação Comercial,
no segundo, a sempre fútil
Câmara Municipal
e, no terceiro, afinal,
está a alegre pensão
da redonda Alzira, a viga
mestra da prostituição.
Mas como vivem tão bem,
em tão segura união,
qualquer dia, todos juntos,
vão fundar a Associação
dos Múltiplos Pecadores,
com banqueiros, comerciantes,
prostitutas, vereadores,
ingleses do British Club,
homens doentes e sãos,
pois o camelô já disse
que somos todos irmãos.
Esse é o bairro do Recife
que tem um cais debruçado
nas verdes águas do Atlântico
e ainda tem o cais do Apolo,
apodrecido e romântico,
beleza que ainda resiste
lá nos desvãos da memória
desse bairro que se escoa
pela Ponte Giratória,
que é uma estranha armação
que agüenta em seu férreo dorso
automóvel, caminhão
e trem de carga bem cheio,
mas não resiste às barcaças
que a fendem do meio a meio.

SAO JOSÉ

É por ela que se chega
ao bairro de São José,
de ruas de casas juntas,
cariadas, mas de pé.
De classe média arruinada,
mas de gravata e até
missa ao domingo, pois sempre
é bom ter alguma fé.
Bairro português que outrora
foi de viver e poupar,
nascer, crescer e casar
naquela igreja chamada
São José de Ribamar.

CHOPE

Na avenida Guararapes,
o Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antônio,
tanto se foi transformando
que, agora, às cinco da tarde
mais se assemelha a um festim.
Nas mesas do Bar Savoy,
o refrão tem sido assim:
são trinta copos de chope,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.
Ah, mas se a gente pudesse
fazer o que tem vontade:
espiar o banho de uma,
a outra, amar pela metade
e daquela que é mais linda
quebrar a rija vaidade.
Mas como a gente não pode
fazer o que tem vontade,
o jeito é mudar a vida
num diabólico festim.
Por isto no Bar Savoy,
o refrão é sempre assim:
são trinta copos de chope,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.

ORADORES

Este ponto verde aqui,
feito de folhas e flores,
é o Jardim Treze de Maio,
onde os nossos oradores
vão um ao outro contar
como foi que conseguiram
a vida inteira passar
nas trevas da ignorância
sem nunca desconfiar.
Pois, cada qual sente um gênio
dentro de si borbulhar
e, coitadinhos, nem sabem,
que o que borbulha
é a ameba que não puderam tratar.

SECOS E MOLHADOS

Ainda existe muita coisa
de bom e ruim pra contar,
mas como sou conhecido
por discreto no falar,
irei, agora, evitar.
Mas não sem antes passar
pelos armazéns de estiva,
mar dos nossos tubarões,
de brasileiros sabidos
e portugueses sabidões
que na vida leram menos
que o olho cego de Camões,
mas que em patacas possuem
muito mais que Ali Babá
e os seus quarenta ladrões.
É por isto que aos domingos,
cada qual na sua Igreja,
reza, assim, as orações:
Naquele mastro real,
vê se descobres um meio
de aumentar meu capital.
Vendendo carne de charque,
importando bacalhau,
dizendo que prata é ouro
e latão é bom metal,
é assim que vivemos desde
Pedro Álvares Cabral.
Pois o Papa já nos pôs,
no Trato das Tordesilhas,
além do bem e do mal.

O FIM

Recife, cruel cidade,
águia sangrenta, leão.
Ingrata para os da terra,
boa para os que não são.
Amiga dos que a maltratam,
inimiga dos que não
este é o teu retrato feito
com tintas do teu verão
e desmaiadas lembranças
do tempo em que também eras
noiva da revolução.

Modos de ler e seus suportes

exemplo de resenha

ANTUNES, Cláudia Rejane D. Modos de Ler. In: Letras de Hoje. Porto Alegre. v. 37, nº 2, p. 11-23, junho, 2002.


Gerferson Neftali



Partindo do pressuposto de que a leitura é uma forma de interação do sujeito com o mundo, podemos observar que os variados suportes podem não só desenvolver aspectos cognitivos e tecnológicos visando sempre ao aperfeiçoamento do homem. É o que vai-nos trazer à reflexão o ensaio “Modos de Ler”, de Cláudia Rejane D. Antunes, a qual busca fazer uma discussão entre os diferentes modos de ler e os recursos facilitadores para estes processos com seus diferentes objetivos determinados.
Dessa forma a autora vai iniciar com alguns aspectos históricos de suportes, desde a oralidade, como principal meio de comunicação e difusão cultural, passando pelas mais diferentes invenções que gradativamente foram permitindo acontecer o desenvolvimento da escrita em suas facetas diversas.
Em seu segundo ponto de debate Antunes vai tratar da materialização da leitura e de sua importância para a propagação dos textos como forma de participação na sociedade, visto que o papel social é um caráter definitivo do ato de ler. Também ressalta o abandono do livro em rolo, antes marcado pela leitura em voz alta, fato que vai contribuir para a circulação dos impressos e facilitar o acesso do novo público à leitura.
Ainda no item sobre a materialização da leitura a autora destaca o aprimoramento tecnológico que de certa forma vai criar uma preocupação com a diminuição de leitura dos textos materializados em livros, visto que, o texto virtual se tornaria uma ameaça aos livros e possivelmente enfraqueceria a divulgação dos mesmos.
No trecho sobra a virtualização do texto a ensaísta enfoca a relação de oposição entre o real e o virtual, destacando que “o virtual existe em potência e não em ato, ele é possível, só falta-lhe a existência.” (p. 14). Ao fazer tal observação aproxima o virtual do real pelo motivo de os dois serem semelhantes, mesmo que o primeiro não exista de fato, mas potencialmente em seu suporte específico. Contudo apesar de não existir materialmente o texto virtual permite ao leitor interagir de forma mais específica e completa, sendo mais ativo do que o leitor em papel. A mudança de suporte interfere diretamente no processo de leitura, o leitor passa de expectador a co-autor dos hipertextos, mesmo que sem uma sequência pré-estabelecida, pois a leitura passa do linear ao não-linear. Isso implica que o próprio leitor construirá sua sequência lógica de leitura e escolherá os textos que serão lidos, esses por sua vez não estão dispostos na rede hierarquicamente, o que exige do leitor uma capacidade de seleção tipológica do texto que lhe for necessário.
Muito embora os meios tecnológicos tenham criado certa preocupação, é importante que se note que existem formas mais adequadas de usar tais aparatos em favor da propagação de informações e desenvolvimento cognitivo do leitor. Antunes diz que com tal divulgação do hipertexto criam-se vínculos entre leitor e seu texto, entre a comunidade e a sociedade e outras relações que visam ao aparecimento de softwares que deveriam ser mais socializados para atingir um número maior de alunos das escolas brasileiras.
É necessário compreendermos que as mudanças sociais acompanham mudanças linguísticas, de práticas de leitura e de letramento, de concepção de língua e linguagem, de compreensão do mundo e de maneiras de ler o mundo. Embora o advento da internet, como um suporte mais bem aceito por grande parcela do nosso público, nos choque e nos faça algumas vezes repudiá-lo, temos que ter percepção de que não é a primeira e não será a última vez que essas mudanças ocorrem na sociedade. Um dia, hoje muito remoto para nós, que fazemos parte de uma sociedade letrada, a escrita desempenhou esse mesmo papel que a internet vem desempenhando hoje: de trazer à tona mudanças bruscas nas maneiras de comunicação e de produção discursiva, que chegou a ser repudiada por muitas pessoas.

A leitura e o virtual

Exemplo de resenha:

A leitura e o virtual na atualidade

SILVA, Ezequiel Theodoro da. A leitura no mundo contemporâneo. In: Leitura e Literatura Infanto-juvenil. PPGL / UFES, 1998.


Gerferson Neftali


Desde que a leitura foi “inventada”, organizou-se cada vez mais com recursos para facilitar a sua realização. Inicialmente não havia a separação entre as palavras, a pontuação, a organização em parágrafos, capítulos, índices, páginas. Esse foi um processo de facilitação da leitura ou de articulação da mesma. A leitura é um objeto cultural, portanto, criado pelo homem e nenhum objeto cultural permanece estático desde a sua criação.
Dessa forma, no texto “A leitura no mundo contemporâneo”, Ezequiel Theodoro da Silva busca lançar mão da apreciação dos recursos facilitadores da leitura e da sua relação com a atualidade.
O autor inicia seu texto mostrando que a leitura no texto eletrônico é uma leitura completamente diferente da que é feita de um texto impresso. O texto impresso tem uma estrutura linear, permite que se volte a ele que se faça uma releitura. O mesmo não acontece com o escrito virtual. Os dois suportes mostram dois diferentes modos de ler. “Ler um livro ou qualquer outro material impresso não é a mesma coisa que ler um texto via computador”.
Em nossa sociedade multimídia qualquer produção ou criação pode ser realizada de diferentes formas. Uma experiência torna-se um filme, transforma-se em livro, vira um jogo que depois dá origem a uma história em quadrinhos e a outros textos e filmes “adaptados”, “inspirados” uns nos outros. Nem sempre se percebe onde essa cadeia de atualizações começou. As criações podem ser simultâneas e uma alimenta a outra. Nem sempre há um único autor, dono da idéia original, mas, há sim, vários criadores que são também autores. Cada nova leitura pode, porém, contemplar diferentes seleções e fazer diferentes atualizações.
Em seguida, o autor demonstra que os recursos tecnológicos têm uma importante, mas não excludente função na propagação da leitura. A internet é uma tecnologia intelectual que virtualiza a função cognitiva da leitura. Para mostrar que essa virtualização de uma função cognitiva não é algo tão novo e apenas relativo à internet, basta remeter à escrita, mostrando como ela foi uma tecnologia que exteriorizou e virtualizou a função cognitiva da memória. No entanto, ao exteriorizar uma atividade intelectual tal “tecnologia” transformou a própria função cognitiva. A escrita é uma virtualização porque com esta houve a separação parcial de um corpo vivo. ”A possibilidade de interatividade faz nascer processos cognitivos específicos do lado do leitor, conforme as suas metas de exploração ou pesquisa”.
A aprendizagem, a leitura tem necessariamente que obedecer a etapas pré-definidas ou podem ser recriadas ao longo do processo de forma múltipla e tomar diferentes caminhos? “Os maiores desafios das transformações aqui discutidas ficam por conta da educação e, mais restritamente, do ensino”. A escola sempre atuou com modelos pré-estabelecidos da cultura letrada, o que acabou por distorcer a sua função inicial para fazê-la trilhar um caminho completamente inverso. Ao invés de estimular a leitura, a escola passaria a fazer o aluno perder o gosto pela mesma.
A questão que se coloca aqui é o nascimento de uma nova noção de texto e de aprendizagem também.
Portanto, é de suma importância desenvolver em nós uma “cultura de leitura”, pois só assim seremos aprendizes e formadores de opinião em todo ambiente social e democrático que estivermos.