quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Lavoura Arcaica - o livro


Lavoura arcaica - parte I
1. Argumento

O livro está dividido em duas partes: A partida e O retorno. André, o protagonista, é um jovem do meio rural arcaico que resolve abandonar sua numerosa família do interior para ir morar em uma pequena cidade (ainda no interior), fugindo, em parte, daquele mundo asfixiante da lavoura, onde o passar do tempo parecia consumir as gerações, onde a rigidez moral mantinha as estruturas sociais análogas às da Idade Média, um mundo em que a loucura das paixões primitivas consumia sua alma, como, por exemplo o relacionamento amoroso e incestuoso (fantasioso ou carnal) com sua irmã Ana.
Com sua fuga, André põe a perder o precário equilíbrio da família – baseada em uma estrutura patriarcal clássica e impregnada por um forte caráter religioso e bíblico. O pai, então, determina que o filho mais velho, Pedro, vá em busca do filho pródigo na cidade. Pedro encontra o irmão em um quarto de pensão marcado pela sordidez e, após inúmeros apelos, consegue convencê-lo a retornar ao lar. Este retorno explicitará ainda mais os aspectos doentios e perturbadores do relacionamento entre os membros da família, com destaque para outros dois personagens: o caçula, Lula, que também pretende, a exemplo de André, abandonar a fazenda em busca de um mundo que promete possibilidades infinitas (o drama do êxodo rural), e a figura cigana, sensual e mediterrânea da irmã Ana, personagem que posteriormente será o pivô da ruína final do clã.
A volta de André ao lar traz uma aparente (porém precária) paz ao ambiente já inviabilizado. A palavra do pai, oriunda da tradição dos Dez Mandamentos, das parábolas bíblicas, dos profetas e dos grandes pregadores cristãos, torna-se ineficaz, configurando a simbólica “lavoura arcaica”, e o resultado não poderia ser outro senão a tragédia: o pai mata a filha Ana, ao perceber que ela ama André, e depois, de modo não explícito no livro, também acaba por perder a vida.
2. Análise
Dividiremos, por questão de didática, a presente análise em três segmentos: a linguagem, o contexto histórico e a família.
A linguagem
Narrado em primeira pessoa, Lavoura arcaica está longe de ser uma narrativa linear, embora a ordem dos fatos possa ser apreendida sem maior esforço. A grande dificuldade do livro (simultaneamente fonte de sua riqueza) é a linguagem. De uma riqueza só superada na moderna prosa brasileira por Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa, Lavoura arcaica, no entanto, não pode ser considerado um romance de invenção ou de resgate léxico-sintático como é o do escritor mineiro. Muito antes pelo contrário. O estilo da prosa de Lavoura arcaica é dos mais elegantes e elevados, é patente o cuidado e a meticulosidade na escolha das palavras e na construção das frases. A inovação se dá no modo elíptico com que o narrador se expressa, nesse fluxo de consciência terrível e assustador, o stream of consciousness de James Joyce depurado ao limite, adquirindo assim extrema funcionalidade, permitindo que o narrador tenha um modo sui generis de revelar, por meio de meias-palavras, as grandes atrocidades que cometeu na sua Odisséia às avessas. Sentenças ex abrupto, sentidos incompletos, uma verborragia extremamente sonora que parece ter como único objetivo evidente lançar mais sombras do que luzes aos fatos. No entanto, tal obscurantismo não pode, de maneira alguma, ser considerado uma espécie de composição barroca pura e gratuita.
As sombras, paradoxalmente, realçam as feridas familiares, que no escuro acabam por se tornar ainda mais ofuscantes (basta lembrar da sutilíssima cena de incesto entre André e o irmão caçula, ou da morte do pai ao final do relato). Em Lavoura arcaica o não dito parece ser mais importante do que a narração dos fatos, contrariando a perspectiva clássica da ficção ocidental a partir do século XIX e principalmente a tendência real-naturalista, muito em voga na ficção brasileira desde a retomada promovida pela chamada geração do Romance de 30. No entanto, as relações do livro com sua época e com a crise da ficção nacional nos anos 1970 são evidentes.
O contexto histórico
A bem da verdade, Lavoura arcaica, pela falta de referenciais históricos explícitos, poderia ter acontecido ontem. Eis uma das linhas seguidas por L. A. Fischer em um artigo intitulado Lavoura Arcaica foi ontem. Esta, porém, seria uma leitura que buscaria como base apenas os aspectos da natureza humana, seus conflitos e vicissitudes. No artigo citado acima, Fischer foge dessa análise e acaba por localizar historicamente o livro como o retrato do fim do mundo do imigrante rural. Semelhante processo ocorrerá até os meados dos anos 1970 de maneira geral e em escala nacional, produzindo parte da imensa população que hoje sitia de maneira já não velada e pacífica as metrópoles.

Em um artigo hoje considerado um clássico na área, J. H. Dacanal aborda de maneira brilhante o tema, retratando a crise da literatura brasileira como fruto da incapacidade de abarcar ficcionalmente a explosão demográfica e tecnológica das grandes cidades, além do esvaziamento e fim do mundo rural arcaico. Por isso, os romances da época seriam produto da “era do interregno militar, da desintegração das estruturas políticas e culturais pós-30, da guerrilha urbana e rural, da industrialização acelerada, das grandes migrações no sentido campo-cidade e do conseqüente e monstruoso inchamento das megalópoles da costa, da miséria e da violência física e moral, do ingresso da mulher no mercado de trabalho e da transformação das estruturas familiares do passado, da crise e das mudanças na Igreja Católica”.
Seguindo a linha de raciocínio de Dacanal, que vê na telenovela o novo espelho das mudanças sociais do país, não é de espantar que os últimos nomes influentes da literatura brasileira tenham iniciado suas carreiras nessas décadas. Se Rubem Fonseca é o cantor da crise da cidade, Raduan Nassar será o dos imigrantes que se estabeleceram no campo e agora não têm outra solução além do deserto ou da aniquilação. Se com Guimarães Rosa o Brasil se despedia do mundo medieval e da Contra-Reforma, preservado no interior e nos grotões do sertão, vinte anos depois a narrativa de Raduan Nassar, ainda que de modo indireto, será o epitáfio das famílias de imigrantes, pequenos proprietários rurais expulsos do campo pela falta de oportunidades.
Outro aspecto da crise do período está refletido na descrença dos escritores da geração nos amplos painéis históricos e sociais apresentados pelos escritores filiados ao Romance de 30, entre eles Graciliano Ramos, Jorge Amado, Erico Verissimo, etc. Tal descrença leva os autores do período, passando pelo intimismo e a introspeção de Clarice Lispector, a procurarem novas formas de narrar a realidade. Parece ser essa uma explicação bastante plausível para a ousadia da linguagem em Lavoura arcaica. O passar dos anos só acaba por acentuar em vez de mitigar o estranhamento de tal obra. Por essa razão, temos a impressão de que é útil ao leitor se aferrar ao contexto histórico para evitar que sua apreciação reduza-se meramente ao caráter estético. O que não seria uma postura surpreendente dado o altíssimo feito artístico alcançado por Nassar.

Lavoura arcaica - parte II


A família
Talvez dos aspectos abordados, este seja o mais sujeito a controvérsias, muito embora nos pareça o de maior permanência e importância no sentido ontológico da obra. Antes de mais nada, acreditamos de fundamental relevância traçar um paralelo entre Lavoura arcaica e a peça de Nelson Rodrigues, Álbum de família. Nesta última, vinculada ao ciclo de peças míticas do dramaturgo pernambucano, uma família nuclear concentra no seu interior toda espécie de ódios, crimes e paixões. Esclarecedora é fala de uma das personagens: “Mãe, às vezes eu sinto como se o mundo estivesse vazio, e ninguém mais existisse, a não ser nós, quer dizer você, papai, eu e meus irmãos. Como se a nossa família fosse a única e primeira. Então, o amor e o ódio teriam de nascer entre nós”.

Semelhante drama, ou desespero acomete André, o protagonista de Lavoura arcaica. Observe-se o seguinte trecho: “se o pai no seu gesto austero, quis fazer da casa um templo, a mãe, transbordando no seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa de perdição”
Incapaz de controlar sua paixão pela irmã, Ana, a fuga parece a única saída viável para manter-lhe a razão e a lucidez. Ela, por sua vez, com seu bailado de cigana com os pés descalços na terra, também parece corresponder ao sentimento. Para acelerar a entropia e o caos que acabará por destruir essa estrutura que se fecha sobre si mesma, há a figura austera e poderosa do pai, de uma virilidade quase indecente, há ainda o amor mais que materno da mãe por seu filho predileto e, impossível de ser relevado, a idolatria do caçula por André, que acaba resultando em uma cena de incesto narrada de modo magistral, quase silencioso. O efeito é perturbador.
O crítico teatral, Sábato Magaldi, analisando a peça Álbum de família enxerga nessa estrutura nuclear, sujeita aos desejos sem freios de seus membros, o grito de um moralista que associa diretamente a liberdade plena ao impulso de morte. “Concretizasse o homem suas fantasias inconscientes, a morte seria a inevitabilidade imediata. A História e a Civilização traem inapelavelmente a inteireza dos impulsos autênticos, disfarçados, transferidos ou sublimados em outros valores”.
Estaríamos então no caso de Lavoura arcaica diante de um esforço moralista de um autor que parece afirmar que já não há esfera de sobrevivência para o indivíduo? A família se extingue com o golpe furioso do pai que ceifa a vida da filha e depois desaparece vitimado por um mal misterioso. A cidade e o mundo lá fora, em contrapartida, parecem não oferecer os elementos para suportar a existência de um homem de modo integral. Não seria assim esta obra um grito desesperado em busca de alguma instituição ou comunidade que venha suplantar o vazio?
No seu sentido dramático, Lavoura arcaica filia-se à grande tradição que deu origem a obras como Agamenon, Édipo-rei e Hamlet. Ao mergulhar nas profundezas do inconsciente, nos vãos escuros da civilização e da psiquê humana, Nassar consegue, pelo menos tematicamente atingir a universalidade partindo de um plano rural e particular. Tem-se, ao ler Lavoura Arcaica, a nítida impressão de que o tempo e o espaço da narrativa poderiam ser quaisquer outros.
A verdade é que passado quase trinta anos de sua publicação, Lavoura arcaica, no que diz respeito à natureza da espécie não envelheceu. Enquanto a estrutura familiar for minimamente mantida, os dilemas, sofrimentos e crimes das páginas do escritor paulista seguirão válidas e universais. O arcaísmo presente no título, contundente nas falas e na vida desses personagens mediterrâneos, ou seja, temperamentais, será sempre presente, alimentando e mantendo um dos maiores paradoxos de nossa literatura.

Artigo produzido com a colaboração de Pedro Gonzaga
Bibliografia
Nassar, Raduan, Lavoura Arcaica, Companhia das Letras, São Paulo.
Magaldi, Sábato, Teatro Completo de Nelson Rodrigues, vol.2, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1981
Dacanal, J. H., A desagregação da narrativa real-naturalista: crise cultural e ficção nos anos 70/80 in: Ensaios escolhidos, Editora Leitura XXI, Porto Alegre, 2004.
Gonzaga, Sergius, Curso de Literatura Brasileira, Editora Leitura XXI, Porto Alegre, 2004
Auerbach, Erich, Mimesis, Perspectiva.
Castelo, José, Inventário das Sombras, Editora Record, Rio de Janeiro, 1999.
Fischer, Luis Augusto, Lavoura arcaica foi ontem in: Revista Organon, Instituto de letras, nº19

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